quarta-feira, 18 de março de 2015

O Penico tem de saber vela!





O Manel era um homem bom, humilde e generoso. É como sempre o vi, desde que nos conhecemos na Escola Naval. Fazíamos parte do tal grupo de cinquenta e um jovens que, vá-se lá saber porque estranhas razões, se juntaram num austero edifício na mata do Alfeite.

Para mim, aquele era um mundo novo. Sobre as matemáticas, as físicas e as políticas, tinha a experiência de dois anos de Técnico, da crise académica e das eleições de 69. Mas sobre as artes náuticas, era um zero absoluto. O mar para mim era praia; praia de manhã, à tarde e à noite.

Mas para o Manel, não. Ele era um veterano que conhecia bem os cantos da Escola Naval e ainda por cima dominava as lides náuticas. Podia tirar partido desse ascendente mas nunca o fez, antes pelo contrário. Preocupava-se até com a minha ignorância náutica e dizia-me: O Penico tem de saber vela! Eu vou ensinar-te.

E assim fez. Numa tarde fria de inverno lá fomos levantar um Vaurien no CNOCA e fizémo‑nos ao rio. Velejámos até ao Terreiro do Paço, acenámos às turistas no Cais das Colunas, corria tudo às mil maravilhas. Até que subitamente o vento refrescou e as condições mudaram radicalmente. Tentámos rumar ao Alfeite mas perdemos o leme. Foi o cabo dos trabalhos!

Não vou contar os detalhes da nossa aventura mas digo que foi duro. Durante horas lutámos contra os elementos mas com a liderança do Manel, um leme improvisado e a ajuda da maré, lá conseguimos voltar ao CNOCA, já noite e totalmente enregelados. Lavámos e entregámos a embarcação, corremos para a Escola Naval, fardámo-nos e apresentámo-nos para o jantar na hora limite. E guardámos só para nós o que correu mal.

Não sei se fui capaz de satisfazer as expectativas do Manel quanto à aprendizagem da vela, julgo que não. Mas sei que foi com episódios como este que criei laços de amizade e camaradagem indestrutíveis com homens bons como o Manel. Laços que duram há quase meio século, desde que o tal grupo de jovens decidiu juntar-se num austero edifício na mata do Alfeite

terça-feira, 3 de março de 2015

O Tio Miguel



– Tenho muita pena que o vosso filho morreu – ditou a Mafalda para ser escrito no desenho acabado de pintar para os avós.
A Mafalda tinha e tem muita pena, mesmo sabendo muito pouco sobre o filho dos avós que dizem ser seu tio.
Um tio diferente.
Todos os tios e tias são gente crescida como os pais, mas este não. Dizem-lhe que era um bebé. Mas os bebés que conhece respiram, comem, choram, dormem e crescem, e este não.
Nasceu há muito, muito tempo, não cresceu e está num sítio onde às vezes vai com a avó pôr flores.
A Mafalda gostava de perceber melhor e tem razão. Como todas as histórias, esta também merece ser mais bem contada.
Quarenta e um anos é tempo suficiente para lembrar o essencial e esquecer o acessório.
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Foi uma gravidez feliz. Nada prenunciava o que ia acontecer. A jovem mãe, ainda estudante universitária e já com uma barriga razoável, viveu intensamente os tempos atribulados da revolta estudantil, dos gorilas e das cargas policiais na cidade universitária. Acompanhou o marido e os amigos em tudo o que tivessem vontade de fazer. Eram as tertúlias na sua casa, eram as excursões turístico-gastronómicas pelo país para visitarem as terras-natal dos amigos, eram os dias de praia ou a acampar na Berlenga para fazer mergulho, eram as sessões da oposição na farsa eleitoral de 73, era tudo o que enchia a vida de um jovem casal com sonhos do tamanho do mundo.

Mas na hora do bebé nascer, as coisas deixaram de ser fáceis e simples. O pai, que tinha combinado com a médica assistir ao parto, ficou na sala de espera. De uma espera de muitas horas. Quando finalmente viu a mãe e o menino, percebeu que o parto tinha sido muito difícil. As marcas dos "ferros" eram bem visíveis na cabeça do bebé e a mãe estava muito combalida. Notou a imobilidade das pernas do menino mas a inexperiência, a delicadeza da médica e a felicidade de olharem o primeiro filho ofuscaram os sinais de que algo estava errado. Souberam depois que a médica decidiu conceder-lhes uma noite de felicidade.

No dia seguinte o avô foi buscar o pai do menino ao Alfeite, coisa que nunca tinha feito. Disse que havia um problema com o bebé, que era preciso ir à maternidade. A partir desse momento o mundo começou a desabar. Na maternidade, o neurologista explicou que o menino sofria de uma malformação congénita, espinha bífida aberta. A extensão dos danos neurológicos não podia ser avaliada com rigor mas eram significativos e irreversíveis. O tecido nervoso perdido não podia ser reparado e as funções dos nervos danificados não podiam ser restauradas. E era urgente decidir fazer, ou não, a cirurgia para fechar o defeito e eventualmente impedir a infecção nos tecidos expostos e a morte do bebé.

Os pais, mal preparados como a maioria dos pais perante o inesperado e a diferença, enfrentavam um doloroso dilema. Consultaram especialistas mas depressa perceberam que pouco ajudavam. A decisão teria de ser deles e rápida. E decidiram não operar. O menino foi internado em Santa Maria por ser o local com melhores condições técnicas para a sua situação. Faleceu com dez dias de vida.

Foram os dez dias mais duros e intensos do jovem casal. Ao drama pessoal juntou-se a vivência das carências do sistema público de saúde do passado. Numa enfermaria cheia de bebés, muitos deles abandonados pelas famílias, faltava tudo menos o esforço e empenho das enfermeiras. As fraldas dos bebés eram os restos de lençóis rasgados. Não havia roupa decente para as crianças. A roupa, as fraldas, os artigos de puericultura e até a alimentação do menino eram levados pela mãe. O que se passava num dos maiores hospitais nacionais era bem a imagem de um regime que estava prestes a cair.

Mas a mãe do menino, depauperada fisicamente e sujeita a um vendaval de emoções, encontrou a energia e a força de vontade necessárias para o acompanhar, cuidar e mimar com muito amor, até aos últimos minutos de vida. Num ambiente hospitalar desolador, a jovem mãe mostrou a coragem e a determinação que mais tarde constituíram a trave mestra de uma maternidade plenamente realizada.

Depois foi preciso voltar a levantar o mundo, juntos. Um mês e meio depois foi o 25 de Abril. A seguir a gravidez da segunda filha e a ansiedade da espera, com o pai ausente a navegar nas águas do Atlântico Sul e depois do Mediterrâneo. Já ficou dito noutra vivência que o nascimento da Joana foi anunciado ao pai por mensagem no centro de comunicações de um navio americano. Depois veio a Catarina. E mais tarde um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete netos!
Anos e anos cheios e muito felizes!
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Pois é, Mafalda. Sabemos que tens muita pena de o tio Miguel ter morrido. Nós também. 
Mas garanto-te que muito do que é a nossa família foi construído com o que aprendemos nos dez dias de vida do tio Miguel.
As flores que a avó lhe leva são um testemunho do nosso agradecimento.