Faz hoje dez anos que o meu Pai partiu, tinha cumprido o seu último objectivo.
Os últimos anos da vida do meu Pai foram difíceis. A saúde, bastante frágil, obrigou-o a sucessivos internamentos hospitalares. Mas, por mais grave que fosse a crise, dizia sempre que só iria para o forno crematório quando nascesse o décimo segundo bisneto. Como nem sequer havia projeto para esse bisneto, brincávamos com ele.
Mas inesperadamente, a neta Joana engravidou do Miguel. E durante toda a gravidez, sempre que estava com a Joana, o meu Pai perguntava quanto tempo faltava para o Miguel nascer. A resposta, mesmo que o tempo fosse cada vez menor, suscitava sempre a mesma reacção do meu Pai: "Eh pá, tanto tempo!"
Na semana que antecedeu o nascimento do Miguel, o meu Pai estava de novo internado, em estado muito crítico. Durante toda a semana, a Joana foi ao hospital à hora do almoço. No início da tarde, eu levava a minha Mãe, que tinha autorização para estar ao lado do meu Pai até eu voltar ao fim do dia, para o ver e trazê-la de volta a casa.
No dia 12, sábado, a Joana viu o Avô pela última vez. Aproximou-se, disse-lhe ao ouvido que gostava muito dele e que podia descansar, faltavam apenas dois dias, e tudo correria bem. O Avô respondeu com o seu habitual "Eh pá!!! Dois dias!". No domingo, a Joana já não foi ao hospital. Na segunda-feira, dia 14, nasceu o Miguel, em Lisboa — o tão desejado décimo segundo bisneto!
Os primeiros dias do Miguel não foram fáceis, devido a problemas respiratórios. Quando fui visitar a Joana na maternidade e conhecer o Miguel, não pude deixar de reparar na coincidência: o número do quarto era o mesmo daquele onde o meu Pai estava internado. E, ao olhar para o Miguel, impressionou-me a semelhança entre os equipamentos de suporte de vida de que ambos necessitavam.
Na terça-feira, dia 15, alterei a rotina: deixei a minha Mãe em Cascais e fui para Lisboa, para estar com a Joana e o Miguel. Depois, regressei a Cascais para ver o meu Pai e trazer a minha Mãe para casa. Pensava que aquela rotina se manteria por mais alguns dias, mas no dia seguinte, quarta-feira, 16, tudo mudou.
Estava com a João no quarto da maternidade em Lisboa, depois de deixar a minha Mãe em Cascais, quando recebi a má notícia. E recorro ao testemunho da Joana: “Recordo vivamente o que aconteceu no dia 16, na neonatologia, quando o Miguel começou a chorar desalmadamente do nada... quando cheguei ao quarto e vos contei, recebeste o telefonema da Avó. Há coisas que não se explicam, sentem-se. E é esse sentir que me conforta o coração. O Avô conseguiu alcançar o seu último objectivo. Tenho a certeza.”
Regressei imediatamente a Cascais para dar o último beijo ao meu Pai.
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“Perguntava muitas vezes se eramos felizes.
Preocupava-o não o sermos.
Para ele a felicidade nada tinha de supérfluo.
Fazer os outros felizes, respeitá-los e ser fiel eram a sua forma de ser e estar na vida, a fórmula correcta para descobrir a felicidade.
O outro era o lado maravilhoso da vida, da sua vida.
O privilégio foi nosso.
O lado maravilhoso da sua vida fomos nós.
Foi assim que nos fez sentir desde sempre e até ao fim.
E é assim que nos sentimos hoje.
Vivemos com saudade.
Mas celebraremos a vida e a felicidade.
Por ele e por causa dele.”
As palavras são da neta Catarina.
A saudade, essa, é de todos nós.