segunda-feira, 30 de junho de 2025

O salário mínimo é uma prisão?


Carlos Moreira da Silva  Rui Gaudêncio

Quando regressei da pós-graduação em Engenharia Mecânica nos EUA, fui colocado no Gabinete de Estudos. O Gabinete de Estudos era um organismo da área do Material da Marinha que, para além de outras funções, servia de depósito de dois tipos de oficiais de engenharia: os “politicamente incorrectos” como, por exemplo, o Begonha e o Serrano, e os com qualificações que a área do Pessoal não sabia ou não queria gerir, como era o meu caso e de outros oficiais, dos quadros permanentes ou a cumprir o serviço militar obrigatório.

Entre os últimos, lembro-me de um em particular. Depois de se formar em Engenharia Mecânica no Porto, porque gostava de automóveis, foi convidado para professor assistente de Investigação Operacional na Universidade e para trabalhar com o engenheiro Valente Oliveira na Comissão de Planeamento Regional do Norte, onde "aprendeu a fazer coisas bem feitas, coisas que ninguém fazia ainda, e que iam contribuir para melhorar o país." Na sequência dessa actividade, fez o Mestrado em 1978 e o Doutoramento em Inglaterra, em 1982, sempre na área da investigação operacional e da gestão empresarial. Quando, em 1983, foi chamado para o serviço militar na Marinha, com 31 anos, já tinha casado duas vezes e tido dois filhos, mas nunca tinha exercido engenharia mecânica.
 
Mas para a Marinha o currículo em investigação operacional e gestão empresarial era irrelevante e o doutorado foi colocado no Gabinete de Estudos a desempenhar funções de técnico especialista de ar condicionado de navios! Ocupou a secretária em frente da minha durante seis meses e, muitas vezes, partilhámos o sentimento de que o investimento que o país tinha feito em nós não estava a ser aproveitado. Cumpríamos o que o chefe nos mandava fazer, mas bastantes frustrados.

Passados os seis meses, o doutorado conseguiu que o pusessem a dar aulas na Escola Naval e ali completou os dois anos de SMO, a ganhar uma ridicularia que quase não dava para pagar as viagens de comboio entre Lisboa e o Porto, onde tinha a família e, entretanto, tinha nascido a terceira filha. Naturalmente que com a ida para a Escola Naval, diminui o contacto com ele, mas de quando em vez fui tendo notícias da sua carreira profissional e empresarial.

Uma carreira empresarial de sucesso que fez do Carlos Moreira da Silva – sempre os três nomes a evidenciarem a importância de se chamar Silva, como notava o Begonha – o nono mais rico de Portugal, segundo o ranking da Forbes dos 50 milionários portugueses. De acordo com a revista, o empresário nortenho tem uma fortuna avaliada em 1 613 milhões de euros.

Como os nossos caminhos nunca mais se cruzaram, devem estar a pensar por que razão me lembrei agora dele. É que hoje, quando tomava o pequeno-almoço e ouvia o noticiário das 7 da TSF, a jornalista introduziu uma notícia com a afirmação de que “o salário mínimo é uma prisão que está a atrasar o crescimento da economia”! Esclareceu depois que tal leitura era do Presidente da Associação Business Roundtable Portugal, que junta as 43 maiores empresas portuguesas e que iria promover uma conferência com o sugestivo lema “Ctrl+Alt+Portugal - Reiniciar para Crescer”1.
 
E passou a palavra ao Presidente da Associação, Carlos Moreira da Silva, que esclareceu: “Portugal, enfim, a partir de 2000, perdeu o sonho coletivo e cresceu muitíssimo pouco durante mais de 20 anos. Isto acontece porque nós não temos sido capazes de ativar a economia de uma forma mais contundente. Nomeadamente os temas da burocracia, portanto um Estado muito pesado que cerceia a capacidade de crescimento da economia, um sistema fiscal muito pesado. Repare, nós passámos de 4% das pessoas que tinham um salário mínimo em 2000 para 24% em 2023. É inadmissível e isto, esta prisão ao salário mínimo afeta de forma significativa o crescimento da economia.”

Claro que o Carlos Moreira da Silva não ligaria nenhuma ao que eu lhe dissesse, mas se por acaso o encontrasse, dir-lhe-ia que se preocupasse menos com o Estado e incentivasse mais os seus amigos empresários da associação que dirige a libertar os trabalhadores portugueses da prisão do salário mínimo. Portugal ficaria bem melhor.



1 Grande Conferência BRP 2025.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Edifício Arte Contínua - Memória


Desenho de Eduardo Salavisa

Há cinco anos, abruptamente, o sonho terminou.


Em 3 de Outubro de 2019, três semanas antes de deixar o cargo, a Secretária de Estado da Defesa Nacional do XXI governo de António Costa e do Ministro da Defesa Nacional João Gomes Cravinho, assinou um protocolo entre o Ministério da Defesa Nacional (MDN) e o Município de Oeiras (CMO) que previa a futura cedência pelo primeiro ao segundo do edifício do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa, junto à praia de Santo Amaro de Oeiras, para instalação de um “Centro de Interpretação da Barra” cujo director seria “nomeado pelo Ministério da Defesa Nacional, o qual asseguraria a respetiva remuneração.” Nesse protocolo, que foi celebrado pelo prazo de um ano, prorrogável por iguais períodos, o Município de Oeiras comprometeu-se a assegurar desde logo a segurança, conservação e manutenção do edifício.


Na prática, depois da assinatura do protocolo com o MDN e do convite público ao Dr. Boiça para coordenar o "Centro de Interpretação dos Fortes de Defesa da Linha de Costa Aqui de Lisboa, no dito Forte do Areeiro, que não é forte...", em 19 de Outubro de 2019, a CMO comprometeu-se a manter o estado em que o edifício lhe foi entregue pela associação cultural “Colectivo a Postos” em Junho de 2020, depois da interrupção do projecto Edifício Arte Contínua que o Vice-Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, numa intervenção na sessão da Assembleia Municipal de Oeiras do dia 18 de Fevereiro de 2020, desvalorizou e caluniou.


Aquele senhor, de nome Emanuel Francisco dos Santos Rocha de Abreu Gonçalves, na intervenção na sessão da Assembleia Municipal difundida em directo para todo o mundo através da Internet, decidiu tecer considerações sobre o projecto Edifício Arte Contínua e sobre a associação cultural sem fins lucrativos “Colectivo a Postos”, de que fui membro fundador e cujos órgãos sociais integrei, que o dinamizou no antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa.

O Vice-Presidente da CMO afirmou ou deu a entender:
  • Que a CMO só foi convidada a ter um papel activo na utilização e conservação do edifício do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa depois do protocolo que assinou com o MDN em Outubro de 2019; 
  • Que desconhecia o papel dos serviços da CMO na concepção e arranque do projecto Edifício Arte Contínua em 2018; 
  • Que não teve conhecimento da intervenção realizada pelo “Colectivo a Postos” e pelos seus parceiros, na fase inicial com o apoio da CMO, para a recuperação do edifício e do espaço envolvente depois de uma década de abandono, saque, vandalismo e ocupação com práticas degradantes; 
  • Que não sabia que a CMO foi informada de todas as iniciativas e propostas para que o projecto Edifício Arte Contínua e as suas iniciativas tivessem a mais ampla participação de todas as entidades públicas, privadas, de solidariedade social e associativas do Concelho de Oeiras, incluindo a própria CMO; 
  • Que desconhecia que nada foi realizado no edifício do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa sem conhecimento do proprietário e da CMO; 
  • Que ignorava que a direcção do “Colectivo a Postos”, depois de ter conhecimento, através das redes sociais, da assinatura do protocolo com o MDN, se reuniu com a presidência da CMO para discutir e definir o futuro do projecto Edifício Arte Contínua
  • Que desconhecia que o responsável pela cultura da CMO informou o “Colectivo a Postos” que o projecto Edifício Arte Contínua poderia permanecer no antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa até Junho de 2020.
Apesar de tudo o que sabia, ou devia saber, o Vice-Presidente da CMO resolveu tecer publicamente considerações surpreendentes sobre o projecto Edifício Arte Contínua e a associação “Colectivo a Postos” que o dinamizava, considerações essas falsas ou caluniosas.

Depois de uma vida e de uma carreira profissional que procurei que fosse exemplar como cidadão, militar, democrata e homem de bem, foi preciso chegar aos setenta anos para que um político que tem idade para ser meu filho e não me conhecia de lado nenhum, ousasse insinuar publicamente, entre outros dislates, que não cumpri as regras e a lei; que fiz um “gato” ou baixada eléctrica da rede pública, que roubei água sabe-se lá de onde e que ocupei ilegalmente um edifício público, sem autorização do proprietário, no caso o Ministério da Defesa Nacional.
 
E o problema é que as insinuações caluniosas do Vice-Presidente da CMO não atingiram só a mim. Atingiram, em especial, as minhas filhas, os meus amigos e os inúmeros cidadãos que comigo e, principalmente, com as minhas filhas, se esforçaram para, num acto singelo e desinteressado de cidadania, prestar um serviço à comunidade e contribuir para a construção de uma sociedade melhor.

Posteriormente, em Maio de 2021, ano de eleições autárquicas, a CMO promoveu a exposição 'Fortificações de Oeiras - Património do Tejo e do Mundo' no Centro Cultural no Centro Cultural Palácio do Egipto. Constatei então que a imagem do que antes era uma quase ruína e foi recuperado por iniciativa da associação “Colectivo a Postos”, serviu de cenário para uma operação de propaganda do executivo da CMO. Nela foi anunciado que o edifício seria o "núcleo central" de um futuro “Museu do Tejo”.


Mas malgrado os discursos dos responsáveis da CMO, hoje, mais de cinco anos depois da CMO assumir a guarda do antigo Posto de Vigilância e Defesa da Entrada do Porto de Lisboa e pôr fim ao projecto Edifício Arte Contínua, a realidade é bem diferente do prometido.

O edifício militar que foi primeiro Bateria e depois Posto de Vigilância durante o século XX, foi abandonado, vandalizado, saqueado e ocupado por marginais durante boa parte da segunda década do século XXI. Por iniciativa da associação “Colectivo a Postos” e na sequência de um acordo com o MDN, o edifício foi reabilitado com o projecto Edifício Arte Contínua

Dinamizado por cidadãos que voluntariamente, com sacrifício dos tempos livres e sem nenhuma contrapartida financeira ou de qualquer outra natureza, o projecto Edifício Arte Contínua recuperou o espaço e realizou uma série impressionante de eventos culturais com a participação de muitas centenas de jovens e menos jovens.



Em Outubro de 2019 estava caiado a amarelo por fora e a branco por dentro. Tinha 25 chaves de portas de espaços e salas limpas e recuperadas por miúdos e graúdos. Tinha nele mais História guardada.

Desenho de Eduardo Salavisa

Durante um ano foi uma "casa que não se quis margem, mas antes convergência, encontro e centro", vivenciados na recuperação, na preparação das iniciativas mensais, nas contribuições de todos aqueles que ali criaram e deram de coração. Permitiu que centenas de alunos encontrassem os poetas à beira-mar. Abriu as portas à fruição do teatro, da literatura, da pintura, da escultura, da ilustração, da música, da arte, por todos os que quiseram entrar. Sentiu o mar e ensinou a navegá-lo. Celebrou a liberdade, a cidadania e o 25 de Abril.

Com a assinatura do protocolo entre o MDN e a CMO, terminou o projecto Edifício Arte Contínua. E cinco anos depois do espaço ser entregue à guarda da CMO, voltou a estar abandonado, degradado e vandalizado. Desta vez ainda mais do que antes!

Vale a pena espreitar o edifício quase irreconhecível com janelas e portas emparedadas, junto à Marginal, a oeste da praia de Santo Amaro de Oeiras, entre o parque de estacionamento automóvel e o Forte de Santo Amaro ou do Areeiro. Terão oportunidade de constatar a degradação do património público que um dia foi motivo de orgulho dos muitos adultos, jovens e crianças que viveram o sonho do projecto Edifício Arte Contínua.