Tratar de qualquer assunto na secretaria do liceu Camões era normalmente um desafio aterrador. Por muito que o aluno se esforçasse, havia sempre algo errado na escrituração da folha azul de 25 linhas, devidamente selada. Uma palavra fora da linha, uma letra rasurada, um pequeno desvio relativamente às regras que não dominava, faziam com que o requerimento fosse imediata e liminarmente reprovado pelo funcionário que o recebia.
O chefe da secretaria, uma figura austera e temida, não pactuava com faltas de cuidado e rigor e o aluno lá ia comprar uma nova folha e novos selos na papelaria estrategicamente posicionada junto do liceu. Voltava à secretaria e à segunda ou terceira tentativa, conseguia que o amanuense aceitasse o requerimento para a matrícula ou outra coisa qualquer. E só depois dessa vitória abandonava a secretaria, aliviado por ter ultrapassado mais um obstáculo.
Sessenta e tal anos depois, recordo a secretaria do liceu Camões sempre que tenho de enfrentar e ultrapassar a prepotência dos novos e muito mais numerosos “chefes de secretaria”. Os de hoje ocupam lugares bem mais elevados na hierarquia das instituições e não dão a cara como o do liceu Camões. Escondem-se atrás de rígidos sistemas de atendimento que obedecem a leis e procedimentos criados ao sabor de interesses que, na maioria das vezes, não coincidem com os dos clientes ou, no caso da administração pública, dos cidadãos que deveriam servir.
De facto, com o emaranhado de leis e regulamentos, mais ou menos opacos, que dominam todos os sectores da sociedade, os cidadãos, individualmente ou organizados, sentem-se impotentes para ultrapassar os múltiplos obstáculos com que se deparam no relacionamento com a administração pública e as grandes organizações.
Sempre que esse relacionamento ultrapassa o nível dos processos simples que podem ser automatizados numa plataforma informática ou resolvidos por um funcionário atencioso e empenhado (infelizmente uma espécie em vias de extinção…), os cidadãos vêem-se envolvidos em situações que nem mesmo o apoio remunerado de juristas ou outros especialistas consegue resolver facilmente e em tempo útil.
E é assim que a justa e compreensível revolta contra a regulamentação excessiva e a prepotência dos novos “chefes de secretaria” está a levar ao poder os Trumps e Musks deste nosso complexo tempo.