sábado, 3 de fevereiro de 2024

"As Portas do Tempo"

Fotografia de Alfredo Cunha

"Acorda o filho da mãe do cabo-verdiano que nós vamos finalmente libertar a terra dele! − gritou um alferes quando chegou a hora de despertar os homens lá nas camaratas, os 200 e tal homens que haviam de partir para Lisboa, para acabar com o estado a que Portugal tinha chegado.

Este é um excerto da intervenção do jornalista Adelino Gomes no lançamento do livro «25 de Abril de 1974, Quinta-feira», com fotografias de Alfredo Cunha (algumas das quais inéditas) e textos de Luís Pedro Nunes (prefácio), Carlos de Matos Gomes, Fernando Rosas e do próprio Adelino Gomes. E o cabo-verdiano a quem o alferes da Escola Prática de Cavalaria de Santarém se referiu quando passavam poucos minutos da uma da manhã do dia 25 de Abril de 1974, era um dos cadetes do curso de oficiais milicianos, conhecido como simpatizante do PAIGC.
 
Embora não o conheça pessoalmente, poderíamos ter encontrado ao longo das nossas vidas. Nascemos nos primeiros meses de 1950, ele na ilha de Santo Antão, em Cabo Verde, eu em Lourenço Marques, actual Maputo, em Moçambique. Viemos adolescentes para a Metrópole e, em Lisboa, iniciámos ao mesmo tempo o curso de engenharia electrotécnica no Instituto Superior Técnico. Mais tarde, os dois interrompemos o curso, eu para ingressar na Escola Naval, ele para cumprir o serviço militar obrigatório no Exército. Com 24 anos, vivemos intensamente o 25 de Abril, separados pelo Tejo. Eu no Alfeite, ele na força do Salgueiro Maia, no Terreiro do Paço e no Carmo.
 
Quando nos 25 anos do 25 de Abril o jornal Público o trouxe do Mindelo para, no local, recordar os acontecimentos que ditaram a sorte do Império, o meu contemporâneo cabo-verdiano afirmou: “Vivi então um momento ímpar de consonância com a natureza. Foi um acontecimento colectivo e eu só tive a sorte de estar presente."
 
Foi de facto um momento ímpar em que um homem cabo-verdiano, ligado ao PAIGC, armado com uma G3, simbolizou o papel que os movimentos de libertação africanos tiveram na génese e na consolidação do movimento militar que derrubou a ditadura. E eu, sem ter tido oportunidade de confirmar, julgo reconhecê-lo numa das magníficas fotografias de Alfredo Cunha que mostro sempre às crianças e jovens no Semear Abril.

Ambos exercemos engenharia como actividade principal ao longo da vida profissional, mas o meu colega cabo-verdiano adoptou também a escrita como arma e meio de aprendizagem. Já tem onze livros publicados e o mais recente é "As Portas do Tempo". Nele, o Carlos Manuel de Melo Araújo chama a atenção de que o mundo está cheio de portas que se estivéssemos atentos nos revelariam, provavelmente, um mundo muito diferente daquilo que nós estamos a construir.
 
Porque entre vidas paralelas há pessoas e histórias que se cruzam não por acaso, mas em consequência das nossas escolhas de evoluir ou não evoluir e do nosso amor pela Liberdade.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

O Dia da Procissão

Pode ser uma imagem a preto e branco de 6 pessoas, Piazza di Spagna, multidão e texto que diz "RTP ARQUIVOS"No dia em que, em Washington e San Francisco, perto de um milhão de pessoas se manifestavam contra a guerra do Vietnam na que foi considerada a maior manifestação de sempre contra uma guerra nos EUA, em que três cosmonautas soviéticos da Soyuz 10 realizavam a primeira tentativa de acoplagem e passagem para estação orbital Salyut, os cadetes do primeiro ano da Escola Naval participavam, no centro de Lisboa, com militares de outros ramos das Forças Armadas, na procissão da Senhora da Saúde. E eu, então com 21 anos, ia à frente dos cadetes, no maior “pincel” – termo da gíria naval para estopada ou sacrifício imposto –, de que me recordo.


Naquele tempo, a participação na procissão da Senhora da Saúde não dependia da crença de cada um. Provavelmente por ser considerada uma cerimónia militar, os cadetes do primeiro ano da Escola Naval, fossem ou não crentes, eram simplesmente nomeados e, tal como outros em anos anteriores, tiveram de cumprir o itinerário da procissão, num fim-de-semana irremediavelmente estragado.

Em marcha muito lenta, saíram da capela de Nossa Senhora da Saúde no Martim Moniz, pisaram as pedras irregulares de basalto negro da rua do Benformoso – diz a lenda que em homenagem ao Boi Fermoso que ali pastara, mas nós só vimos um noutra rua e nada tinha de fermoso –, ouviram os piropos das mulheres da vida dura no Largo do Intendente, viraram na Travessa do Cidadão Gonçalves para desceram a avenida Almirante Reis e a rua da Palma e lutarem contra o empedrado e os carris dos eléctricos, seguiram pela Dom Duarte até à Praça da Figueira e voltaram ao Martim Moniz pelas ruas dos Condes de Monsanto, do Poço do Borratem e do Arco do Marquês de Alegrete.

O Diário de Notícias noticiou no dia seguinte que “milhares de pessoas assistiram, de tarde, na Baixa Pombalina, à tradicional procissão da Senhora da Saúde”. E que “o Chefe do Estado (Américo Thomaz), acompanhado de sua esposa e filha e ministros da Defesa, do Interior, da Marinha, do Secretariado da Aeronáutica e presidente do município de Lisboa, assistiu ao desfile no Palácio Folgosa, na Rua da Palma.
 
É rigorosamente verdade o que o DN escreveu porque nós vimos os dirigentes do Estado Novo nas janelas do 1º andar do que é hoje a 4ª Esquadra de Lisboa da PSP. E vimos muitas outras realidades que a passagem dos anos foi apagando da nossa memória.
 
Não fosse o filme a preto e branco do noticiário nacional daquele dia que a RTP guarda nos seus arquivos, teria esquecido a menina vestida de freira, o homem com a menina vestida de anjinho ao colo, as meninas que carregavam coroas ou as senhoras do Movimento Nacional Feminino.
 
Mas o tempo não me fez esquecer a pobreza e degradação das casas da Mouraria apesar das janelas engalanadas com colchas, o rosto triste da maioria das pessoas que assistiam ao cortejo, em contraste com a alegria dos que acenavam das janelas das casas abastadas.

As intermináveis duas horas da primeira e única procissão religiosa em que participei foram mais do que suficientes para reflectir sobre o que estava a observar. E fortalecer a convicção de que um regime que se alimentava daquele tipo de cerimónias e era governado pela gente que vi no 1º andar do Palácio Folgosa, estava condenado.

De facto, exactamente três anos depois, a ditadura foi derrubada pelas Forças Armadas ali representadas e o seu fim foi festejado intensamente por todo o povo português, incluindo naturalmente o que assistiu aquela procissão da Senhora da Saúde.