domingo, 28 de janeiro de 2024

A Contadora de Histórias


A minha Amiga M Odete Santos Silva, mulher do Camarada de Abril Nuno Santos Silva, decidiu partilhar em livro histórias de vivências pessoais, extraordinariamente ricas. Ao longo dos anos, a Odete foi passando os seus escritos para o computador e, recentemente, decidiu seguir os conselhos dos amigos que lhe diziam que era uma pena não os publicar em livro.

Fê-lo numa edição pessoal com o título “Contadora de Histórias” e uma capa com a pintura homónima do Mestre Albino Moura, que também assina o separador. E num gesto de ternura que não esquecerei, enviou-me um exemplar com uma bonita dedicatória.

Tenho saboreado, deliciado, as muitas histórias que a Odete partilha no seu magnífico livro. São bonitas histórias de vida e tal como desejou na dedicatória, todas elas têm o condão de me transportar para os seus lugares. Mas, mais do que isso, algumas tiveram também o condão de me transportar para os meus lugares, os lugares onde nasci e vivi a infância, em Moçambique.

A “Casa” levou-me à casa de Quelimane que a minha mãe recuperou e ampliou com o seu “Engenheiro”, certamente também assessorado por um ajudante de quem não me lembro o nome. O macaco “Figueiredo” levou-me ao macaquinho que roubou o pão com queijo à minha irmã e que, quando a nossa mãe acorreu ao choro da menina e ralhou com ele, berrou irritadíssimo e afastou-se lentamente a comer o pão da menina. E noutros momentos, as descrições da Odete fizeram-me sentir o aroma intenso das mangas maduras no Gurué e o gosto das deliciosas papaias.

Mas permitam-me que recorde o “Engenheiro” da minha mãe. A imagem que guardo dele é de um homem muito grande e afável, de um bom gigante. Fez parte do meu universo de criança até aos 9 anos. Apesar da perna disforme, consequência da elefantíase, caminhava quilómetros com grande agilidade. Aliás essa característica valeu-lhe uma das alcunhas dadas pela minha avó: o Pé Leve.
 
Era o homem dos setes ofícios e das mil manhas. Por isso a minha avó também o chamava de Manha-Manha, talvez o tratamento que mais usava. A relação do Manha-Manha com ela, e depois com o meu pai, merece, no entanto, uma explicação mais detalhada.
 
O Manha-Manha era natural de Inhambane e foi trazido para Lourenço Marques como cozinheiro pelo vizinho de baixo da casa da Anchieta onde moravam os meus avós. Mas ele tinha muitos outros misteres, desde logo de homem de Deus, pastor de uma igreja protestante. Estivesse onde estivesse, o Manha-Manha não passava despercebido, sempre activo e empreendedor. E criou laços afectivos muito fortes com a minha família paterna.

Quando os meus pais foram para Inhambane, tinha eu poucos meses, o Manha-Manha pediu que o levassem com eles. Entre ele e o meu pai houve sempre uma boa relação, apesar das crises resultantes da incompatibilidade das suas manhas com o feitio rigoroso do meu pai. Por isso, em Inhambane, o meu pai arranjou-lhe um cargo na repartição de agricultura que foi chefiar.
 
Quando seis ou sete anos depois o meu pai foi transferido para Quelimane, o Manha-Manha quis ir com ele. Apesar de não dominar o dialecto da região, criou de imediato uma rede de contactos. Pediu autorização para usar o alpendre da nossa casa para as suas celebrações religiosas e ali pregava para muitas dezenas de crentes que o iam ouvir.

E criou uma nova família e descendência na terra do rio dos Bons Sinais. Quando um novo rebento nasceu, o Manha-Manha baptizou-o, em honra do meu pai, de Engenheiro Aníbal Jardim Bettencourt. Assim mesmo, com título académico e tudo a que tinha direito!

Chegado a este ponto das minhas memórias, interrogo-me se o “Engenheiro” que pintou as paredes da casa da Odete a tinta de areia, lançando mãos-cheias de areia sobre a segunda demão de tinta branca, não teria alguma relação familiar com o Engenheiro, filho do Manha-Manha.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

O mal dos algoritmos

 

Nos últimos dias fomos Semear Abril em três escolas do 1º ciclo.
 
Falámos naturalmente de Abril e dos seus valores com uma centena e meia de alunos do 3.º e 4.º anos de escolaridade. Mas também falámos do reino de Sikkal e do que caracteriza uma Sociedade Justa, dos Nós de Marinheiro e dos laços sociais, da gaivota Guincho e da carneirada de que se deve afastar, dos erros do Quinzinho Carapau de Corrida.

Em todas as turmas sentimos o interesse e a vontade de participar das crianças. Umas mais irrequietas ou menos atentas do que outras, mas o balanço foi extremamente positivo, como sempre tem acontecido desde que iniciámos o projecto Semear Abril em Outubro de 2022.
 
Tão positivo que ontem, ao reflectirmos sobre a experiência, um companheiro interrogava-se sobre o que corre mal para que mais tarde, a meio do trajecto educativo, alguns destes jovens desistam do exercício saudável da cidadania e adiram a projectos antidemocráticos e antissociais.
 
Poderia elencar várias razões como, por exemplo, a pulverização dos laços familiares, a influência descuidada e muitas vezes agressiva dos pais, a atomização e enfraquecimento das instituições tradicionais e dos grupos comunitários, a frustração dos professores ou as desigualdades sociais. Mas se tivesse de apontar apenas uma, seria a progressiva substituição da educação tradicional pelos famigerados algoritmos que dominam as plataformas sociais e, em consequência, determinam a visão que muitos jovens têm do mundo.

Estamos a deixar que os jovens sejam estimulados por algoritmos que não controlamos e não os ajudam a serem bons cidadãos e seres humanos funcionais. Que os empurram para serem consumidores e dependentes, para serem tribais, para segregar os que vêm de outra cultura ou que pensam de forma diferente, para odiar e sentir raiva.

Os algoritmos que dominam as plataformas sociais não formam pessoas porque os modelos de negócio a que obedecem são anti-humanos. Não ensinam os jovens a compreender e a juntar-se aos que são diferentes deles, a fazer parte de algo maior do que a sua tribo.

Não promovem a Solidariedade, a Justiça, a Paz e a Democracia.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Os Pides de Peniche


Há 59 anos, faltavam nove para o 25 de Abril de 1974, foi inaugurado o Posto da PIDE em Peniche.

Não sei qual foi a razão para a PIDE instalar uma brigada em Peniche, mas admito como provável que a famosa fuga, nos primeiros dias de 1960, de dez presos políticos da Prisão da Fortaleza – oficialmente “Cadeia do Forte de Peniche”, uma das prisões especiais controladas pela PIDE – tenha pesado na decisão.

Sei, contudo, que no dia 18 de Janeiro de 1965, o Director Silva Pais, acompanhado por Barbieri, Sachetti e Pereira de Carvalho, foi a Peniche entregar ao Chefe da Brigada Cleto o espaço onde iria funcionar o Posto da PIDE. Tratava-se de um antigo armazém num rés-do-chão da então Avenida Engenheiro Frederico Ulrich, hoje Avenida do Mar, convenientemente adaptado. A cerimónia a que assistiram, entre outras entidades civis e militares, o Governador Civil do Distrito Duarte Alves, o Presidente da Câmara Almeida Baltazar, o Capitão do Porto Tenente Andrade e Silva e o Director da Cadeia Capitão Falcão, terminou com um animado convívio no restaurante Nau dos Corvos.

A PIDE, tal como a sua antecessora PVDE, sempre vigiou e controlou tudo o que se passava no interior e no exterior da Cadeia. Quer por intervenção directa dos agentes, quer por informadores recrutados no corpo de guardas prisionais e na população de Peniche, a PIDE já vigiava quem visitava os presos, os locais onde comia e pernoitava, as pessoas com quem conversava e que o ajudavam, realizando buscas e interrogatórios aos penichenses que considerava não simpatizarem com o regime.

Mas com a instalação do novo Posto, que mais tarde foi transferido para o 1º andar de um prédio da Rua 13 de Infantaria, a vigilância dos pides aumentou. Registavam os nomes de todos os familiares e outras visitas dos presos, anotavam as matrículas dos carros e estavam omnipresentes na vida dos penichenses e em todos os espaços que frequentavam, por muito cuidado que as pessoas tivessem.

Foi assim que, no final da década de 1960, o avô da João, o José do Rosário Leitão ou “Zé Baterremos” que os penichenses bem conheciam, um homem bem-disposto, amigo do seu amigo, sempre com uma piada ou anedota na ponta da língua, mas já fisicamente debilitado pela idade e a doença e sem actividade política de qualquer natureza, foi detido no café Gaivota e levado para o Posto da PIDE na rua 13 de Infantaria, onde passou a noite e foi tratado como um perigoso delinquente. Tudo por dizer, numa roda de amigos, que o Salazar, que sofria de tremuras, ia pôr canela nos pastéis de Belém!

Talvez como desafio, num dos primeiros carnavais da década de 1970 que passei em Peniche, decidi mascarar-me com uma velha farda da Legião Portuguesa. Com aquela farda pequena para o meu tamanho, muito justa e a faltar pano nas pernas e nos braços, e uma máscara que me tapava completamente a cara, sentia-me suficientemente grotesco para brincar o Carnaval. E lá fui para a rua e para o Clube, onde os amigos e as amigas ficaram surpreendidos quando descobriram quem era a estranha figura.

Ainda hoje me interrogo se durante aquela noite de Carnaval não me terei cruzado com algum dos extremosos defensores da ordem e dos valores daquela época. Talvez porque a Legião já não tivesse a importância de outrora ou os pides de Peniche já não acreditassem no seu papel, o que é certo é que não fui incomodado, ao contrário do que tinha acontecido poucos anos antes com o avô Zé.