quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Uma história para o Miguel




O Miguel telefonou e pediu: — Gostava de ter conhecido o teu Pai... conta uma história do teu Pai.

— Está bem, mas o meu Pai contou-me tantas histórias que não sei por onde começar... Deixa-me pensar… Talvez possa começar por uma que se passou numa terra muito longe, onde ele e eu nascemos, quando o meu Pai tinha mais ou menos a tua idade.

Um dia, um amigo trouxe três embrulhos, três prendas para os três irmãos. O meu Pai era o mais novo e por isso foi o primeiro a escolher. Sem hesitar, escolheu o embrulho maior, devia ser o melhor brinquedo! Era uma cadeira com uma ovelha a fingir que puxava e três rodas: duas grandes atrás e uma pequena à frente. Um triciclo com pedais seria melhor, mas mesmo assim ficou contente. 

O problema foi quando se sentou no brinquedo. A ovelha levantou-se no ar, a cadeira caiu para trás e o meu Pai bateu com a cabeça no chão! Sentou-se de novo, com mais cuidado, mas passado um bocado caiu outra vez para trás. Não havia nada a fazer, o brinquedo era assim... Não era defeito, era feitio…

Deixou de brincar com a cadeira da ovelha até que um dia os três irmãos foram tirar uma fotografia. Vestiram-se para a ocasião e o fotógrafo arranjou um grande brinquedo para os mais velhos. Para o mais novo foram buscar a cadeira da ovelha e sentaram-no, contrariado.

Para a posteridade ficou a foto dos três irmãos, com o mais novo na cadeira da ovelha, com cara de poucos amigos, à espera de cair para trás! Muitos anos depois, o meu Pai mostrou-me a fotografia e contou-me a história da cadeira da ovelha. E explicou-me porque é que estava com aquela cara:
— Não gostava do brinquedo. Foi castigo por ter escolhido o embrulho maior!

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Força de Vida

 


A consulta com a médica de família estava marcada para as quatro da tarde.

A imobilização do braço por causa da recente fractura do colo do úmero não a deixa conduzir e por isso pediu-me para a levar ao centro de saúde. Mas antes ia ao cabeleireiro, estava a precisar: “Vens-me buscar à uma e um quarto e deixas-me lá”.

Faltava um quarto para a uma, telefonou: “Então onde estás, já estou à tua espera?” Fez confusão com as horas de outro compromisso e estava na rua. Saí logo que pude, mas quando a vi já tinha andado mais de um quilómetro. “Vim andando… fez-me bem andar…”

Entrou no carro e deu-me as instruções para a tarde: “Tenho aqui os pingos para vista, são de duas em duas horas. Às duas peço à cabeleireira que mos ponha, mas às quatro tens de ser tu”. A operação que fez na semana passada às cataratas de uma vista obriga a esta rotina.

Deixei-a na cabeleireira e voltei às três e meia. “Mas que grande corte! Está bonita” – disse eu. “Estava mesmo a precisar… Fiz tudo, cabelo, depilação e mãos! Mandei vir o almoço do restaurante moçambicano e comi no cabeleireiro, soube-me muito bem!”

Depois da série de três pingos com intervalos de cinco minutos, entrou no centro de saúde às quatro em ponto. As cinco e meia, telefonou-me: “Saí agora da médica, podes vir buscar-me. Sabes lá, esperei uma hora para ser atendida!

À porta do cento de saúde, recebi mais umas instruções: “Se não te importas, levas-me ali ao supermercado, preciso de fazer umas compras. Mas antes pões-me os pingos das seis".

E assim foi, depois de lhe pôr os pingos, entrámos no supermercado para as compras que só gosta de fazer naquela loja… Já passava bem das seis e meia da tarde quando a deixei em casa.

"Obrigada e até amanhã, filho. Amanhã espero por ti ao meio-dia” – lembrou, não fosse eu esquecer-me do teste à covid para a operação à outra vista na sexta.

A agenda de uma senhora com noventa e três anos é muito cansativa!

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Election Day



Primeiro eram as personagens e as paisagens do faroeste das histórias de quadradinhos do Cavaleiro Andante. Nos primeiros anos do liceu eram os mapas e as fotografias do “Novo Atlas Escolar Português” de João Soares e era a terra de emigração sonhada pelo amigo Joninho. Alguns anos depois passou a ser o país onde faziam a música que gostava de ouvir, da luta pelos direitos civis e dos protestos estudantis contra a guerra que os militares faziam no Vietnam.

A partir de Novembro de 1974, embarcado e a navegar num navio da Marinha de Guerra dos EUA, num tempo em que as comunicações com Portugal eram muito difíceis, foi a imersão total na cultura e modo de vida norte-americanos. Durante seis meses comia comida dos EUA, via filmes dos EUA, via televisão dos EUA, lia jornais dos EUA, sentia-me nos EUA, quer estivesse a navegar, fundeado ou atracado em Gibraltar, em Espanha, em França ou em Itália. A informação sobre Portugal era muito escassa e restringia-se às cartas e aos recortes de jornais que recebia de Lisboa e às notícias vindas dos EUA sobre o medo do que os norte-americanos chamavam de maré comunista.


Nesses seis meses que coincidiram com um turbilhão de acontecimentos mundiais, vivi ao lado de norte-americanos as ondas de choque provocadas pela resignação de Nixon, pelo desaire na guerra no Vietname e pela queda de Saigão. Percebi ao ler pouco tempo depois o livro “The Final Days” e a descrição do episódio de choro e soluços de Nixon ajoelhado no chão do gabinete presidencial, como eram frágeis os presidentes dos EUA e o sistema eleitoral que os elegia.



Depois foi a pós-graduação na Califórnia, viver mais de dois anos com a família o dia-a-dia dos norte-americanos, conhecer um sistema de ensino muito melhor que o português, recordar no campus da UC Berkeley o activismo pela liberdade de expressão e contra a guerra do Vietname, sentir os efeitos sociais e económicos da crise petrolífera, sofrer o assédio dos nacionalistas durante a crise dos reféns em Teerão, conhecer por dentro as qualidades e os defeitos, as forças e as fraquezas de um país e de um povo tão fascinantes e poderosos como frágeis.

Quiseram as circunstâncias profissionais e pessoais que, desde então, nunca deixasse de aprofundar o conhecimento e as ligações aos EUA e ao seu povo. Em 2016 entristeceu-me a eleição de Trump mas não me surpreendeu. Assim como não me surpreenderá a reeleição em 2020 de uma personagem com tantos defeitos e tantos delitos fiscais e financeiros que se perder as eleições corre o risco de falir ou ter problemas sérios com a justiça.

Mas apesar de saber que Biden é tão fraco como os outros presidentes norte-americanos que conheci e que o sistema político e eleitoral norte-americano não produzirá melhor do que ele, gostaria que amanhã o colégio eleitoral lhe fosse favorável.