terça-feira, 29 de outubro de 2019

"Anda comigo ver os aviões"

 


As páginas da Internet são como as conversas: umas arrastam as outras. Estava eu na do US Holocaust Memorial Museum à procura do testemunho emocionado de Sebastian Mendes, o décimo dos catorze filhos de Aristides Sousa Mendes, nascido e mais tarde exilado na Califórnia, quando encontrei um filme de 1943 sobre o porto de Lisboa e o Aeroporto Marítimo de Cabo Ruivo. Distraí-me com o convívio dos hidroaviões com as embarcações tradicionais do Tejo e não resisti a partilhar as imagens no Facebook.
 
Depois os comentários dos amigos fizeram-me reflectir sobre a decisão do governo de Salazar e de Duarte Pacheco de desactivar o Campo Internacional de Aterragem de Alverca em 1940 e construir dois novos aeroportos mais perto do centro de Lisboa: o terrestre na Portela e o marítimo em Cabo Ruivo.


Como muitas outras obras, foram apresentadas pela propaganda do regime como sinais de progresso. Lisboa, a capital mais ocidental da Europa, passaria a ser o melhor terminal europeu das ligações transatlânticas e uma grande plataforma aérea para voos internacionais. Para uma ligação rápida por automóvel entre os dois aeroportos, construiu-se uma via rodoviária de 3 km denominada Avenida Entre-os-Aeroportos. Os hidroaviões vindos da América, faziam escala na Horta, amaravam no Rio Tejo e desembarcavam os passageiros em Cabo Ruivo. Daí, eram transportados por automóvel até à Portela, onde eram distribuídos pelos aviões que levavam aos diferentes destinos na Europa. Os passageiros que iam da Europa para a América faziam o percurso inverso. Tudo alinhado com a estratégia da companhia de aviação americana Pan American Airways, mais conhecida como Pan Am.


Quando em 1955 ou 56 o meu avô me levou a ver os aviões na Portela e os hidroaviões em Cabo Ruivo, o meu deslumbramento de criança que só conhecia o campo de aviação de Inhambane e as suas avionetas deve ter sido semelhante ao de muitos portugueses que não viviam na capital. Mas a realidade nada tinha de deslumbrante. A Pan Am interrompera os voos transatlânticos de hidroaviões em 1945, Cabo Ruivo era uma amostra decrépita do que fora idealizado e Lisboa nunca foi uma grande plataforma aérea para voos internacionais.

O aeroporto da Portela, encaixado na cidade que o mesmo governo que o concebeu fez expandir na sua direcção, como se de um “Portugal dos Pequenitos” se tratasse, nunca teve condições para ser um verdadeiro terminal europeu de ligações aéreas. A solução brilhante propagandeada pelo regime da ditadura há oito décadas, rapidamente se transformou num problema que 45 anos de regime democrático e centenas de estudos realizados por especialistas, certamente muito bem pagos, não foram capazes de resolver.

Os saudosistas do regime de Salazar costumam dizer que a localização do aeroporto da Portela pode não ser boa mas é o único que Lisboa tem e o regime democrático não foi capaz de construir outro melhor. E de facto têm razão…

Resta-me apaziguar a frustração por continuar a viver no “Portugal dos Pequenitos” com a recordação do deslumbramento de criança e os acordes da canção d’Os Azeitonas: "Anda comigo ver os aviões levantar voo / A rasgar as nuvens / Rasgar o céu".

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Puzzle

 

A CORRUPÇÃO NÃO ENCAIXA NO PUZZLE DOS VALORES HUMANOS
 Jardim-Escola João de Deus – Olivais - 1º Ciclo, Prof. responsável: André Carvalho
Menção Honrosa do Concurso Nacional “IMAGENS CONTRA A CORRUPÇÃO”, Edição 2018-2019


Numa conversa sobre o Estado Novo com alunos do 2º ciclo, referi que o progresso económico e social propagandeado pelo regime não correspondia à realidade de um país pobre, atrasado, que obrigou milhões de portugueses a emigrar para tentarem melhorar as suas condições de vida. Referi também que eu e outros oficiais de Marinha, nas deslocações de serviço e formação ao estrangeiro, ganhávamos consciência de realidades económicas e democráticas bem diferentes da que se vivia em Portugal.

Posteriormente, uma aluna respondeu num teste que o Estado Novo não resolveu os problemas do país… "porque as pessoas da Marinha viajavam para outros países e viam que Portugal não era moderno e que havia liberdade noutros países, e isso influenciou as pessoas a emigrarem."

Sem dúvida, a aluna esteve muito atenta às minhas palavras! Agora só falta um pequeno ajuste das peças do puzzle…


terça-feira, 15 de outubro de 2019

A morte no Ateneu

 

O jornal i noticiava ontem que terá desaparecido um exemplar raro de "Os Lusíadas", avaliado em 100 mil euros, da biblioteca do Ateneu Comercial de Lisboa, mas em Março o JN escrevia que a Livraria Lello teria feito uma proposta de 300 mil euros para a compra do mesmo exemplar e acrescentava: “Esse montante destina-se à abertura de um fundo que tem por objetivo o restauro da valiosa biblioteca do Ateneu, parcialmente em risco devido à falta de verbas para a sua recuperação e manutenção.”
 
Não sei o que se passa com o edifício do Ateneu Comercial de Lisboa, que foi palácio, escola, ginásio, piscina e um espaço de arte e cultura. Sei que a Vogue Homes o quer transformar num projecto imobiliário residencial, certamente de luxo, e que está em curso a classificação pela Direção-Geral do Património Cultural.
 
Sei também que desde que as portas do Ateneu fecharam em 2012, a degradação é visível e as tintas dos grafittis foram tomando conta das suas paredes e algum do seu recheio está em parte incerta. É uma das inúmeras versões de um guião que eu e todos os portugueses preocupados com a preservação do património conhecem muito bem.

Acontece porém que o Ateneu é para mim muito mais do que património delapidado e saqueado. É uma memória viva dos meus 14, 15 anos. Não sei porque comecei a fazer ginástica no Ateneu, talvez tenha sido influenciado pelo meu tio materno que lá tirou o curso comercial e praticou luta greco-romana. O que é certo é que por lá andei a dar saltos no trampolim e a elevar-me na barra e nas argolas. E no verão passava tardes na piscina construída no jardim das traseiras, na altura descoberta e com uma vista magnífica.

Numa dessas tardes vivi o primeiro episódio trágico da minha vida. Olhei para o fundo da piscina e vi lá em baixo, imóvel, um dos meus colegas da ginástica e da natação. Mergulhámos, trouxemo-lo para a superfície, mas já estava morto. Durante muito tempo fui assombrado por aquela visão e só o tempo esfumou os contornos negros.

É claro que o desaparecimento do valioso exemplar de "Os Lusíadas" e do recheio do Ateneu, a degradação do edifício, não têm o dramatismo da morte do meu companheiro de juventude. Mas não pude deixar de pensar nela quando li a notícia da condenação do Ateneu e do seu património.