terça-feira, 30 de janeiro de 2018

A lenda do rei republicano




─ Não precisamos de rei para nada cá em Portugal porque o nosso Presidente da República faz o papel de um extraordinário rei em qualquer parte do planeta!

Calma, a afirmação não é minha, tanto mais que não percebo nada destas coisas de reis e rainhas. Quem o afirmou foi o monárquico progressista José Albano Salter Cid de Ferreira Tavares, que seria barão se vivêssemos numa monarquia. Mais precisamente Barão do Cruzeiro.

Um outro monárquico, o Duarte Pio João Miguel Gabriel Rafael de Bragança, disse um dia que fazia sentido comparar o progresso dos países europeus que têm reis e rainhas com o nosso atraso por sermos uma república. Mas hoje, no Portugal do presidente que faz de extraordinário rei segundo José Cid, é possível que tal comparação tenha deixado de fazer sentido. O povo português talvez tenha sido mais uma vez inovador e poderá ter juntado o melhor dos dois mundos num país que é uma república e tem um rei. Admito que assim seja mas vou esperar para ver. É que o José Cid já me desiludiu uma vez.

Lembro-me bem do que senti há cinquenta anos quando ouvi pela primeira vez “A Lenda de El-Rei D. Sebastião”, a primeira música criada por um português e cantada em português que o Em Órbita passou. Juntei logo uns trocos e fui à discoteca, era assim que então se chamavam as lojas que vendiam discos, comprar o primeiro EP do Quarteto 1111. O José Cid tinha de facto criado uma música de qualidade que parecia abrir um caminho novo. Depois voltou a compor e interpretar canções boas, muitas abordando temas interessantes que acabaram por espicaçar e ser proibidos pela censura fascista. Mas com o tempo meteu-se em macaquices e a promessa original esfumou-se.

Tal como na lenda que o Quarteto 1111 contou no seu primeiro êxito, podemos estar hoje a viver um novo Sebastianismo colectivo, dos que têm uma crença irracional em coisas, em valores e em poderes que não existem, dos que se deixam enganar pelos falsos Messias do oportunismo e da mistificação.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Confissão



Está bem, eu confesso. Pedi e aceitei um convite para o jogo de despedida do Pelé no Maracanã! Se o MP português, ou quiçá brasileiro, quiser investigar possíveis ligações com decisões dos serviços que chefiei, tenho de aceitar.

É certo que posso invocar fortes atenuantes. Nunca fui ver jogos do Benfica ou de qualquer outro clube, aliás aquela ida ao Maracanã foi a única vez que entrei num estádio para ver um jogo de futebol. E não vi o jogo todo. Compromissos sociais em Copacabana fizeram com que o Bebé e eu chegássemos atrasados e não ocupássemos os lugares na tribuna de honra. Também não sei nada de economia ou finanças, não sou ministro de coisa alguma nem presidente de qualquer grupo da união europeia.

Mas as gentes do MP, tão ocupadas que estão com as centenas e centenas de casos de violência doméstica, podem não prestar a devida atenção às minhas circunstâncias. É humanamente compreensível.

sábado, 27 de janeiro de 2018

Vergonha




"Eles pareciam pessoas normais, como tu e eu."


As conclusões do relatório de análise do homicídio em violência doméstica de uma mulher jardineira por um homem trabalhador da construção civil desempregado, ocorrido em 2015 em Valongo, são a imagem dura mas fiel da ineficácia do Ministério Público e dos valores e atitudes, individuais ou partilhadas, que perpetuam a violência e a discriminação na sociedade portuguesa.

Segundo o relatório, a actuação do Ministério Público, no decurso do inquérito originado por denúncia de violência doméstica apresentada pela vítima, não decorreu de acordo com os procedimentos que estão previstos na lei e ou em instruções que está obrigado a respeitar. Em concreto:
  • O atendimento da vítima foi efectuado por quem não tinha preparação técnica para o efeito;
  • Não foi atribuído o estatuto de vítima nem foram prestadas informações sobre os apoios de que podia beneficiar;
  • Não foi avaliado o risco de ocorrência de novos episódios de violência doméstica ;
  • Não foi desencadeada qualquer medida de protecção da vítima;
  • Não foram desenvolvidas diligências tendo em vista a ponderação da necessidade de aplicação de medidas de coacção ao agressor.

Desde que foi apresentada a denúncia por violência doméstica pela mulher, a 29 de Setembro de 2015, até à data da sua morte, a 4 de Novembro de 2015, dia em que prestou declarações no Ministério Público, decorreram 37 dias sem haver qualquer decisão quanto a medidas de protecção em benefício da vítima ou quanto a medidas de coacção a aplicar ao agressor

Sobre o tratamento noticioso do relatório e apesar deste denunciar duas falhas graves que facilitaram o homicídio da mulher vítima de violência doméstica, sem estabelecer qualquer hierarquia de importância, só a do Ministério Público é notícia na comunicação social. É significativo que o comportamento vergonhoso da comunidade em que a vítima e o agressor estavam inseridos não abra os noticiários nem esteja nos títulos dos jornais. Ainda de acordo com o relatório, embora os comportamentos do homem fossem do conhecimento de algumas pessoas da comunidade local em que a mulher e o homem se encontravam inseridos e com quem mantinham relacionamento pessoal, não há notícia de qualquer reacção no sentido de alertar ou sinalizar a situação junto dos órgãos de polícia criminal, do Ministério Público ou de qualquer entidade que pudesse apoiar a vítima.

Em Valongo, como no resto do país, a violência doméstica continua a ser entendida como uma questão íntima do casal, interior ao agregado familiar, silenciada e tacitamente aceite. Neste como em muitos outros casos que ocorrem diariamente em Portugal, os comportamentos de violência doméstica eram do conhecimento de pessoas que tinham relações próximas com a vítima e o agressor, sem que isso tivesse provocado qualquer efeito negativo para o agressor nem o desencadear de iniciativas que prevenissem o homicídio. Mesmo despois da sua constituição como arguido e depois dos factos provados, não sofreu qualquer tipo de rejeição social.

No período em que vítima e agressor se relacionaram, a violência doméstica sempre teve a natureza de um crime público e bastava uma denúncia feita por qualquer pessoa para desencadear a abertura de um inquérito e todos os instrumentos de intervenção e prevenção.

A instituição Ministério Público errou mas nós todos, como povo, também errámos. E continuaremos a errar se não alterarmos os factores socioculturais negativos que dominam a sociedade portuguesa.

É por isso que o combate à burocracia e à ineficácia da Justiça e o trabalho de desconstrução de crenças, mitos e estereótipos sobre a violência contra as mulheres são prioritários para quem deseja o progresso da sociedade portuguesa.

(Relatório aqui)