As traineiras abrigam-se na barra
os mastros em fantástico arvoredo.
São peixes coloridos, de brinquedo
e eu o triste rapaz que solta a amarra.
Os telhados reúnem-se no largo,
assembleia de pobres e crianças.
Em falas, cantos cobram-se esperanças.
Homens chegam do mar com rosto amargo.
Lá baixo a vaga escreve na muralha
a história destes muros. Toda em brios
salta adiante o Baleal e falha.
E na gávea da velha fortaleza,
fico a seguir o rumo dos navios,
num choro de asas de gaivota presa.
António Borges Coelho
No início da década de 80 do século passado, depois da saída das últimas pessoas vindas das ex-colónias e alojadas nos edifícios da antiga prisão da Fortaleza de Peniche, um grupo de cidadãos de ou com afinidades a Peniche, procurou ali instalar um museu e evitar que os espaços mais significativos da prisão fossem destruídos ou destinados a outra coisa que não a invocação da memória da resistência ao Estado Novo. Apesar da instabilidade política e das alterações do poder na autarquia, foram capazes de obter o apoio dos autarcas que fizeram nascer o Museu Municipal, concebido como dois museus num só: um museu local e do mar, que representasse a realidade de uma terra pobre de pescadores que lutam pela vida no mar; e outro em memória da realidade dos que, privados da liberdade, lá sofreram anos a fio por terem lutado pela liberdade do povo português e por ideais humanistas.
Como
o Estado Novo tinha desfigurado o edifício no seu traçado
arquitetónico de fortaleza militar, concentraram-se na preservação do
núcleo da prisão política. Com entusiasmo e poucos recursos,
fizeram muito para as condições existentes. O espaço, exterior e
interior, foi limpo e arranjado. O acervo arqueológico e etnográfico
disponível na terra ocupou uma parte do museu. No espaço reservado à
resistência, com a colaboração de ex-presos políticos e de resistentes
antifascistas, instalaram diversa iconografia e informação sobre o que
tinha sido a vida na prisão. Sabiam que o que faziam era pouco
mas acreditavam que a associação dos vários elementos constituintes do
museu seria um factor dinamizador. E de facto a Fortaleza tornou-se
lugar obrigatório de visita de gente da região, de escolas, de
turistas, de militantes políticos, de investigadores, de curiosos. Desde
então a média anual de visitantes ronda os quarenta mil. Realizaram-se
encontros, conferências, debates.
Infelizmente o
entusiasmo que levou à criação do Museu Municipal não se manteve e a carência de recursos da autarquia, agravada com a falta de apoios externos, não possibilitou a expansão e a melhoria do Museu e o aproveitamento e conservação dos edifícios. Mais de quatro décadas depois do Movimento das Forças Armadas ter
aberto as portas da Fortaleza e apesar do esforço continuado da autarquia, o estado dos edifícios não ocupados pelo Museu é lamentável e é notório o subaproveitamento de um espaço que deveria ser de partilha do saber e da memória, assim como de evocação e estudo da resistência antifascista. Ciclicamente é lembrada a necessidade da recuperação e dignificação da Fortaleza de Peniche, em regra associada por quem levanta a questão à concessão de parte do espaço para instalação de uma unidade hoteleira, que uns dizem ser
compatível com o Museu da Resistência que tarda a ser criado e outros discordam. Os
responsáveis autárquicos e governamentais manifestam as suas preocupações e intenções, a comunicação social é inundada de posições de
quem conhece e não conhece o assunto, mas logo vem a
acalmia e tudo fica na mesma, até ao próximo alarme
intelectual.
Parece ser maioritariamente consensual que o ciclo da inoperância deve ser quebrado, que a Fortaleza de Peniche e a
sua envolvente deve ser transformado num espaço digno, apelativo e sustentável que propicie a partilha da história e do saber de um povo do mar, a evocação da memória da resistência e da luta pela liberdade e o estudo e o debate dos caminhos do futuro, e que esse deve
ser o objectivo primordial de qualquer solução que venha a ser definida e concretizada. A discussão entre quem defende a rentabilização do local com uma unidade hoteleira que nenhuma entidade, pública ou privada, teve vontade ou foi capaz de construir, mas que financiaria e potenciaria o culto da memória e do saber e quem argumenta que o espaço não deve ser concessionado para exploração hoteleira e o Estado deveria (?) encontrar a melhor solução para a recuperação da fortaleza, mascara a nossa incapacidade colectiva de defender aquele património e a memória a ele associada. Entretanto há quem tente retirar dividendos políticos, acenando com soluções milagrosas de contornos mal definidos e mérito duvidoso, nunca confirmado durante as mais de duas décadas de duração da polémica.
De facto, a polémica sobre a recuperação e valorização da Fortaleza de Peniche tem sido contaminada pela partidarite e pelo irrealismo. São muitas as vozes e poucas as nozes, raramente com algum miolo. Entre a degradação e o subaproveitamento do edifício e do espaço da prisão fascista e a utopia da “cidadela de Cascais,” é difícil encontrar uma ideia realista e exequível tendo em conta as condições de Peniche e o interesse dos penichenses. Os contributos positivos para a discussão e solução do problema são excepções no meio de um mar de opiniões e comentários que inunda os meios de comunicação e as redes sociais.
A Magna Carta para o Desenvolvimento de Peniche no horizonte de 2025, aprovada por unanimidade na reunião de Câmara de Peniche de 15 de Janeiro de 2009, pouco ajuda a perceber o plano de acção dos responsáveis autárquicos relativamente à Fortaleza. No cenário preferido, o Cenário Verde Escuro (Sustentável e Equilibrado) - Sardinha Viva, limita-se a referir a “requalificação da Pousada na Fortaleza” e a transformação do Bairro do Visconde “num ecomuseu ao vivo, interagindo com a Pousada da Fortaleza,” como se a Pousada fosse um dado adquirido e essencial para o desenvolvimento de Peniche. Percebe-se assim a frustração dos actores políticos perante a falta da Pousada. É certo que a Magna Carta refere a valorização e recuperação do Património Histórico-Militar de Peniche – Fortaleza de Peniche, Forte de Nossa Senhora da Consolação e Forte de São João Baptista –, mas nada mais adianta sobre o assunto.
Ainda sobre a Pousada, conhecemos o protocolo de 2002 entre a Câmara Municipal de Peniche, a Direcção-Geral do Património e a ENATUR e os acordos posteriores, mas também sabemos do desinteresse e incapacidade de os concretizar. Tudo indica que a recuperação e a valorização da Fortaleza, assim como a preservação da memória da prisão política e a edificação do Museu da Resistência, sendo importantes para a promoção e desenvolvimento de Peniche, terão de ser conseguidas sem a famosa Pousada, ou independentemente dela. Desde logo porque a promoção de Peniche, como de qualquer outro território, deve ser feita com base na sua identidade territorial, evidenciando os traços culturais, históricos e tradições. No caso de Peniche, para além do Mar, a Fortaleza é sem dúvida um desses traços. De há uns anos para cá, Peniche tem sido identificado como Capital da Onda. A marca Peniche, Capital da Onda é interessante e tem contribuído para a notoriedade de Peniche na comunicação social e para um aumento de visitantes em determinadas épocas do ano, mas é redutora e não reflecte a identidade do território.
A identidade de um território é construída ao longo de gerações. Tem como pilar o seu povo, com os seus hábitos, vivências e lendas, que originam a sua própria cultura e a sua história e que tornam esse território único e genuíno. Peniche é um território com história. O seu povo é o resultado do cruzamento de culturas e identidades de vários locais do país, que se fixaram neste local para trabalhar na faina do mar, na indústria conserveira e na indústria naval. Ainda ligado ao mar, Peniche é uma referência na gastronomia, em que o peixe é um ingrediente de excelência. O porto de Peniche é um dos principais portos de pesca de Portugal e foi um dos portos de defesa mais importantes. A praça-forte de Peniche, com a sua Fortaleza e as outras fortificações do concelho, era, no século XVII, a segunda mais importante de Portugal e defendia o território de pilhagens e invasões hostis. A Fortaleza foi no século XX uma das principais prisões políticas do Estado Novo, que marcou a vivência da cidade e do seu povo durante quatro décadas. Recentemente, os desportos náuticos têm-se desenvolvido uma vez que o território tem um património natural de costa, mar, ondas e ventos, que os favorecem. São todos estes, e não apenas o surf ou as praias, os traços marcantes de Peniche, a sua marca mais genuína.
Com o condicionamento da actividade piscatória e as consequências negativas na indústria conserveira e de construção naval, o turismo passou a ter uma importância reforçada na economia de Peniche. E na actualidade, o turismo cultural é um importante sustentáculo da actividade turística. O turismo cultural era tradicionalmente associado à cultura sofisticada e a pessoas instruídas e endinheiradas, mas hoje este segmento inclui muitas atracções culturais populares, para públicos alargados, e os lugares culturais devem funcionar como lugares de interesse para indivíduos de escalões etários e graus de instrução diversificados. O turismo cultural abrange um leque alargado de patrimónios, culturas e vivências que devem contar uma história, tornar a experiência participativa, serem focadas na qualidade, serem relevantes para o turista e proporcionarem uma sensação de autenticidade. Com a competição entre mercados tradicionais de turismo, aumentou a procura das especificidades territoriais e locais como alternativa de destinos a nível mundial. Por outro lado, o turismo cultural não só estimula os países e as regiões a protegerem as culturas das suas comunidades, como também desempenha um papel crucial na reabilitação das identidades locais e culturais, contribuindo para a sua difusão mundial. O turismo cultural pode ser um estímulo para revalorizar, afirmar e recuperar os elementos culturais que caracterizam e identificam cada comunidade perante um mundo globalizado.
No caso de Peniche, os elementos culturais que caracterizam o território e o seu povo são os que António Borges Coelho sintetizou no poema que escreveu na prisão inspirado pela vista do porto e da vila. Um belo soneto mais tarde musicado por Luís Cília que nos fala dos edifícios e ambiente social de Peniche e da experiência do prisioneiro. São também os elementos culturais que Mariano Calado, filho adoptivo de Peniche, decidiu descrever no livro Peniche na História e na Lenda, depois de estar detido nas prisões do Aljube e de Caxias na sequência do “Golpe da Sé” e sentir, com mais consciência, o significado da existência em Peniche de uma prisão política. Os mesmos elementos culturais que Mariano Calado estudou e descreveu na tese sobre as fortificações da região e nos outros trabalhos sobre a história, os costumes, as crenças e as tradições de Peniche.
Assim tudo parece apontar para que a recuperação e a valorização da Fortaleza de Peniche sejam enquadradas no fortalecimento da identidade cultural da região e na criação de um pólo de atracção de turismo cultural, entendido na sua forma moderna e segundo os seguintes vectores:
- Divulgação das características e papel das Fortalezas Abaluartadas na defesa do território e na expansão do império português;
- Divulgação dos mecanismos de poder e repressão da ditadura do Estado Novo e da luta de resistência;
- Divulgação dos hábitos, vivências e lendas do povo de Peniche, incluindo a sua gastronomia.
A Magna Carta para o Desenvolvimento de Peniche considerou que o Cenário Verde Escuro (Sustentável e Equilibrado) – Sardinha Viva é o que melhor se adapta à perspectiva de desenvolvimento do município. Nesse contexto, a Fortaleza deverá constituir-se como polo central de divulgação e dinamização do quadro prospectivo de desenvolvimento definido para esse cenário, numa estratégia de valorização, recuperação e dinamização do centro da cidade, nomeadamente do centro histórico, enquanto área privilegiada de circulação pedonal, de visita e de comércio, com o objectivo fundamental da sua regeneração. Para além do Museu da Resistência, que asseguraria a evocação e caracterização histórica, política e social do regime salazarista, da repressão e da luta antifascista, seria instalado no interior da Fortaleza um Centro de Interpretação dos três vectores de turismo cultural: sistema de fortificações defensivas, mecanismos de poder e repressão da ditadura do Estado Novo e história e cultura do povo de Peniche. Sobre ao sistema defensivo do concelho de Peniche e da região envolvente, seria feita uma contextualização histórica, militar e estratégica dos elementos que o integram. O Centro de Interpretação apostaria fortemente na imagem e na informação interactiva e funcionaria como centro de recepção e orientação dos visitantes, em grupo ou individuais, do sistema defensivo espalhado pelo Concelho, do Museu da Resistência, do porto integrado no meio urbano onde poderiam assistir à descarga, transformação e comercialização do peixe, e de todos os outros locais do Concelho com interesse turístico. O Centro de Interpretação serviria também como local de reuniões e debates e de apoio a visitas escolares ou eventos culturais.
Mas mesmo que o cenário definido na Magna Carta para o Desenvolvimento de Peniche não seja integralmente confirmado no futuro, o espaço da Fortaleza deve ser recuperado e estruturado de forma a contemplar os três vectores de atracção turística, que naturalmente partilharão recursos tecnológicos, de reunião e apresentação, de arquivo, de apoio e de serviços públicos comuns. Será desejável que, de acordo com o princípio da subsidiariedade, o projecto seja tanto quanto possível coordenado a nível local, envolvendo a autarquia e os cidadãos que para isso estejam disponíveis, assim como as entidades e associações de cidadãos interessadas. Como em muitas outras questões, o sucesso depende da convergência de esforços em torno de um objectivo comum e do que todos formos capazes de realizar, cidadãos e instituições autárquicas e governamentais responsáveis pela Fortaleza de Peniche.
Mas mesmo que o cenário definido na Magna Carta para o Desenvolvimento de Peniche não seja integralmente confirmado no futuro, o espaço da Fortaleza deve ser recuperado e estruturado de forma a contemplar os três vectores de atracção turística, que naturalmente partilharão recursos tecnológicos, de reunião e apresentação, de arquivo, de apoio e de serviços públicos comuns. Será desejável que, de acordo com o princípio da subsidiariedade, o projecto seja tanto quanto possível coordenado a nível local, envolvendo a autarquia e os cidadãos que para isso estejam disponíveis, assim como as entidades e associações de cidadãos interessadas. Como em muitas outras questões, o sucesso depende da convergência de esforços em torno de um objectivo comum e do que todos formos capazes de realizar, cidadãos e instituições autárquicas e governamentais responsáveis pela Fortaleza de Peniche.